
Esperança que salva: Como cientistas ‘caçam’ na Amazônia moléculas que podem virar esperança contra o câncer
Por Edmilson Pereira - Em 3 meses atrás 1727
Reza a lenda que o açaí, pequeno fruto roxo escuro que brota de uma palmeira, surgiu para um povo indígena amazônico durante uma crise de alimentos e o salvou da fome. Agora, o fruto dá nome ao Centro Avançado de Pesquisa e Inovação Biotecnológica da Amazônia Oriental, que busca abrir caminhos na produção de medicamentos — além de aplicações em mais áreas, como agricultura, transportes e cosméticos — a partir da floresta.
O projeto Iwasa’i — açaí em um dos troncos da língua tupi — reúne 17 instituições, a maioria da Amazônia, e tem apoio do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A ideia é estruturar o laboratório-sede, que fica na Universidade Federal do Pará (UFPA), e facilitar o acesso de cientistas locais a estruturas de ponta, a exemplo do Sirius — o acelerador de partículas brasileiro —, que fica no CNPEM.
“Como na lenda, esse centro quer proporcionar sustentabilidade tecnológica para a região, utilizando processos que não destruam o meio ambiente”, diz Rafael Azevedo Baraúna, professor do Instituto de Ciências Biológicas e pesquisador do Laboratório de Engenharia Biológica, Espaço Inovação, Parque de Ciência e Tecnologia Guamá, ambos da UFPA.
Ao apostar na sustentabilidade local, porém, o centro busca também respostas para desafios globais — em um momento em que especialistas alertam para uma pandemia de resistência antimicrobiana e para o avanço contínuo dos casos de câncer e outras doenças crônicas, em meio ao envelhecimento populacional.
Os pesquisadores do Iwasa’i estão colhendo agora os frutos da primeira expedição do projeto, feita em 2021, no Parque Estadual do Utinga, um verdadeiro quintal urbano no coração de Belém, que muito em breve sediará a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP-30).
Em artigo publicado na revista científica Microbiology Spectrum, da American Society for Microbiology (ASM), eles relatam como, a partir de poucas gramas de solo, identificaram que a maioria das moléculas, cerca de 62%, produzidas por apenas três bactérias, eram desconhecidas e, mais: as análises apontam que essas substâncias têm potencial antitumoral e antibiótico. Além disso, parecem ter descoberto uma nova espécie de bactéria — o manuscrito está em preparação para publicação em revista científica.
“Nesse primeiro trabalho, conseguimos justamente mostrar isso: o potencial inexplorado (da Amazônia). Tem muita molécula desconhecida”, diz Ana Carolina Favacho Miranda de Oliveira, pesquisadora pós-doutora do Laboratório de Engenharia Biológica do Parque de Ciência e Tecnologia Guamá e autora principal do estudo.
“Não esperávamos encontrar uma espécie nova, muito menos na primeira expedição no solo amazônico”, comenta Daniela Trivella, coordenadora de Descoberta de Fármacos do Laboratório Nacional de Biociências, do CNPEM, que fez parte da pesquisa.
Novas expedições já foram feitas em outras partes da região, como a Ilha de Marajó e os arredores de Santarém. Além da diversidade de espécies no solo, também há interesse nos rios, lagos e mangues.
A natureza é o antídoto
Talvez você ache estranho que cientistas busquem medicamentos em substâncias químicas (moléculas ou metabólitos) produzidas por microrganismos, como bactérias e fungos. Afinal, geralmente eles são justamente os inimigos que queremos combater. Mas, como diz o ditado, “é na hora do aperto que a gente conhece o amigo” — e, neste caso, esses micróbios podem ser grandes aliados.
Pense assim: na natureza, bactérias e fungos produzem moléculas para se comunicar, defender seu território e sobreviver em meio a uma intensa competição. É como se estivessem em uma constante “guerra química”. E o que funciona como arma contra outros microrganismos pode, para nós, humanos, se tornar um antídoto.
Potencial contra tumores
Nesse sentido, fica mais fácil entender o potencial dessas moléculas contra outras bactérias (antibióticos) e fungos (antifúngicos). Mas como elas podem agir contra o câncer?
Essas moléculas interferem no crescimento, na reprodução e até na morte dos concorrentes. O câncer, de forma simples, acontece quando as células perdem o controle sobre esses processos essenciais — crescimento, reprodução e morte —, mecanismos relativamente conservados ao longo da evolução. Por exemplo, muitos fungos são eucariotos — ou seja, têm um núcleo definido, assim como as células humanas.
“A natureza é o melhor químico que existe”, resume Daniela. Segundo a pesquisadora, dos cerca de 2 mil fármacos em uso no mundo, cerca 68% vêm dela — vale dizer, é claro, que grande parte deles precisa passar por modificações para o consumo humano: historicamente, em só 6% dos casos, a molécula natural já era, por si só, um bom fármaco.
Por ora, a maioria dessas substâncias foi descoberta na natureza de outros lugares que não do Brasil — não porque a nossa não seja promissora, somos um dos países que mais publica sobre moléculas da biodiversidade, mas os cientistas apontam para uma falta de investimento consistente para investigar mais locais e para que as descobertas virem medicamentos.
“Não conhecemos as moléculas da biodiversidade brasileira ainda”, fala Daniela. Se a fauna e a flora amazônicas ainda são pouco conhecidas, a biodiversidade microscópica do bioma — bactérias, fungos e outros microrganismos invisíveis — permanece como uma “matéria escura”, diz ela.
Ciência em ‘larga escala’
O pulo do gato veio com as possibilidades das ciências ômicas, também chamadas de “ciência em larga escala” — pois buscam ir do micro ao macro, medindo tudo simultaneamente, até o nível molecular. O conceito delas não é exatamente novo, remonta aos anos 1990, mas elas só se tornaram viáveis devido a avanços tecnológicos recentes e se difundiram na última década.
Na visão dos cientistas, elas ajudam a evitar que a maioria das moléculas descobertas se perca no “vale da morte” e permitem buscar soluções na natureza sem desmatar, tornando a ciência mais sustentável.
Fonte: Estadão
Foto: Ana Carolina Favacho Miranda de Oliveira/Arquivo Pessoal