Destroçada economicamente e com uma  inflação de 70% ao ano na Argentina gera explosão de consumo e pobreza ao mesmo tempo

Destroçada economicamente e com uma inflação de 70% ao ano na Argentina gera explosão de consumo e pobreza ao mesmo tempo

Por Edmilson Pereira - em 2 anos atrás 643

O supermercado do meu bairro em Buenos Aires costumava abrir às 8h da manhã todos os dias, mas há algumas semanas passou a abrir cada dia mais tarde.  Frustrada com esse atraso, um dia reclamei com o caixa pela falta de pontualidade.

“Antes de abrir temos que atualizar os preços dos produtos que aumentaram, e a cada dia a lista do que temos de remarcar é mais longa”, explicou o funcionário, pedindo desculpas.

Se deparar com preços mais caros a cada vez que você vai às compras é uma das consequências de morar em um país com mais de 70% de inflação ao ano, uma das mais altas do mundo.

Esse problema não é novidade para os argentinos.

Enquanto em outras partes do mundo os consumidores estão horrorizados porque o aumento do custo de vida chegou a 10% ao ano, como consequência da pandemia e da invasão da Ucrânia pela Rússia, na Argentina, ter números como esses seria um sonho.

Por aqui, há uma década, a inflação não fica abaixo de 25% ao ano, e nos últimos anos esse número dobrou.

No entanto, nada se compara ao que vivemos este ano, em que problemas internos, aprofundados por problemas externos, levaram a uma aceleração da inflação não vista desde a crise de 2001-2002, que deixou mais da metade da população na pobreza.

Desde março, o país vem registrando aumentos mensais de preços superiores a 5%.

Em julho a inflação atingiu 7,4%, valor mensal mais alto das últimas duas décadas, e a maioria dos consultores estima que em agosto a alta de preços tenha ficado em torno de 6,5%.

Esta é a razão pela qual, nas últimas semanas, as maquininhas de remarcar preços não têm dado conta do serviço.

Mas o pior é que poucos preveem que a inflação vá desacelerar. Ao contrário: a última Pesquisa de Expectativas de Mercado do Banco Central da Argentina indica que a projeção de inflação é de 90% até o final do ano. E vários analistas acreditam que o número pode chegar a três dígitos.

Sem ‘âncoras’

Mesmo aqueles que têm muita experiência em conviver com a inflação perdem a bússola com esse nível de reajustes.

É que uma das consequências mais danosas de ter uma inflação tão alta é que não temos mais o que os economistas chamam de “âncoras”, ou seja, referências de preços.

Os comerciantes reajustam valores de acordo com o custo que estimam que terão de pagar no final do mês para substituir aquele produto. Alguns reajustam de acordo com a inflação do mês anterior.

E não faltam aqueles que aproveitam a confusão generalizada para lucrar, ampliando suas margens de ganho.

Por outro lado, há setores que sofreram muito durante a pandemia, como turismo, gastronomia e vestuário, que aproveitam a reabertura da economia e a necessidade de muitos regressarem à vida normal para impor fortes aumentos de preços para recuperar um pouco do tempo perdido.

O que isso gera é uma distorção de preços que faz com que os consumidores não saibam mais o quanto as coisas deveriam valer.

“Outro dia comprei um par de sapatos infantis online e paguei 13.000 pesos (cerca de US$ 90, considerando a cotação dólar ‘oficial’, ou US$ 45 no paralelo), o que me pareceu caro”, comenta Yanina, uma amiga professora, que não sabe se fez uma compra boa ou ruim.

Depois fui ao supermercado e gastei quase o mesmo só na compra semanal”, diz ela.

A confusão é ainda maior se você tiver que pagar por um serviço, desde contratar um encanador ou eletricista para consertar um problema na casa, até pintar as unhas ou levar o carro para a oficina.

Você não tem a menor ideia do que eles podem cobrar. Vai me custar 3.000 pesos? 5.000 pesos? Ou 10.000?

É impossível saber o que é caro e o que é um preço razoável, porque não há nada para comparar.

As duas Argentinas

Embora a inflação afete a vida de todos os argentinos, o impacto é muito desigual dependendo do grupo em que você está.

Quem tem salários reajustados para repor a inflação vive uma realidade, e a grande maioria, que perde poder aquisitivo mês a mês, vive outra.

Os primeiros são os grandes responsáveis pela explosão de consumo que a Argentina vive, fenômeno que surpreende muitos, que se perguntam como é possível que os restaurantes estejam lotados e os shoppings cheios em meio à crise.

Ou que o grupo britânico Coldplay tenha conseguido esgotar dez shows no enorme estádio do River Plate, um recorde absoluto para este país.

A explicação não é apenas que ainda existam mais de 20% da população com renda alta ou média-alta. Mas também que muitos deles, e mesmo pessoas com rendimentos mais modestos, optam por consumir em vez de poupar.

“As pessoas que têm pesos tentam se livrar porque eles ‘derretem'”, explica o economista Santiago Manoukian, da consultoria Ecolatina, referindo-se à alta inflação que corrói o valor da moeda local.

Com acesso limitado ao seu instrumento de poupança favorito, o dólar — por conta do limite “oficial” de US$ 200 e da cotação recorde do “blue” —, muitos optam por comprar bens duráveis para manter o valor de seu dinheiro, ou gastam em atividades que lhes dão prazer, como comer fora, assistir a um show ou viajar.