Pesquisa busca entender porque há idosos centenários que não tem sequer sintomas enquanto jovens morrem de Covid

Pesquisa busca entender porque há idosos centenários que não tem sequer sintomas enquanto jovens morrem de Covid

Por Edmilson Pereira - em 3 anos atrás 663

Parouhi Darakjian Kouyoumdjian teve dengue e Covid-19 simultaneamente, mas apresentou sintomas mais condizentes com uma forma leve da primeira. E se recuperou bem. Ainda mais raro do que o nome da senhora Parouhi foi seu caso surpreendente de co-infecção, principalmente se for levado em conta que ela tem um século de vida.

Ela adoeceu em agosto passado, mas seu caso continua a interessar cientistas. Eles buscam em suas células e genes pistas para combater a pandemia. A senhora Parouhi, de São José do Rio Preto (SP), está entre os centenários estudados pela Universidade de São Paulo (USP) para identificar por que algumas pessoas aparentemente frágeis são infectadas e sequer desenvolvem sintomas, e outras, jovens e fortes, morrem de Covid-19, sem nenhum fator de risco conhecido e mesmo que tenham acesso a bom atendimento.

São nesses extremos da pandemia que a ciência busca descobrir os pontos fracos do coronavírus. O Sars-Cov-2 é um assassino em massa, mas deixa flancos expostos, visíveis mais facilmente nos casos de resistência ou extrema suscetibilidade.

A pesquisa, liderada pela geneticista Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-Tronco da USP, investiga genes que podem tornar as pessoas mais resistentes ou vulneráveis ao coronavírus.

O estudo está em curso, mas baseada em dados epidemiológicos apresentados recentemente, Zatz está convencida de que os resistentes são mais frequentes do que os suscetíveis a agravamento.

O problema é que, ainda assim, são milhões os vulneráveis e até o momento não há como identificá-los. Tampouco é fácil encontrar os resistentes porque não há como saber quem foi ou não exposto, devido à baixa testagem no Brasil.

— Os centenários com PCR positivo são resistentes evidentes, assim como jovens sem comorbidades que faleceram. Por isso, os estudamos — afirma Zatz.

Características genéticas e imunológicas influenciam a forma como uma pessoa reage às infecções de forma geral. Isso é conhecido no caso da Aids e da dengue hemorrágica, por exemplo. Os casos de resistência ao HIV estão associados a uma mutação específica no gene CCR5, que bloqueia o vírus.

Mas a Covid-19 parece ser ainda mais complexa, salienta Zatz. Não apenas um, mas um conjunto de genes explicaria o fato de centenários, alguns com comorbidades, além da própria idade avançada, escaparem ilesos do coronavírus. Tampouco a vulnerabilidade estaria associada a um gene só.

Identificar essas características promete revelar mecanismos fundamentais da Covid-19 e formas de combate-la, abrindo caminho para desenvolvimento de novas vacinas e medicamentos. Tem ainda aplicações mais imediatas:

— Queremos entender, por exemplo, a resposta à vacina. Por que algumas pessoas produzem mais anticorpos do que outras, por exemplo — explica.

Além de centenários sobreviventes e jovens que faleceram, a pesquisa investiga mais de 80 nonagenários que se curaram ou sequer manifestaram sintomas de Covid-19 mesmo estando positivos; 100 dos chamados casais discordantes, definidos como aqueles em que um dos cônjuges adoeceu com gravidade ou morreu e o outro nada teve; e gêmeos igualmente expostos ao coronavírus.

O estudo com os jovens que morreram da doença sem ter qualquer comorbidade, com 45 indivíduos até o momento, é realizado em parceria com o grupo de Paulo Saldiva, professor titular do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Os centenários parecem frágeis, mas são o grupo mais resistente. Aguentam qualquer desaforo do ambiente, diz Zatz. O grupo dela estuda 13 centenários. A meta é, além de sequenciar o genoma deles, multiplicar suas células em laboratório, obter células-tronco e estudar a resposta delas ao Sars-CoV-2, inclusive às variantes.

A senhora Parouhi foi uma das primeiras participantes. Ela nasceu no que hoje é a atual Armênia, mas chegou com 6 anos ao Brasil, fugindo do massacre dos armênios pelos turcos. Seu filho mais novo, o médico João Aris Kouyoumdjian, de 67 anos, conta que a mãe passou fome e muitas dificuldades, mas sempre teve saúde férrea.

— Ela continua muito bem, tem apenas alguns problemas de visão e audição naturais do envelhecimento. Já tomou as duas doses da vacina. Nada a assusta, mas está ansiosa pelo fim da pandemia — diz Kouyoumdjian.

A mãe dele já deu especial contribuição para combater a pandemia ao ceder amostras de sua pele, para extração de células. Outra dos centenários do estudo é uma senhora de 106 anos, que sobreviveu à gripe espanhola (1918/19) e à Covid-19 em 2020.

Há ainda uma senhora de 104 anos que não tem um rim e nem por isso a Covid-19 agravou. Causa ainda mais espanto uma idosa de 114 anos, da Paraíba. Ela faleceu ainda no ano passado de causas não relacionadas à pandemia e era uma das pessoas mais velhas do mundo. Na verdade, segundo Zatz, era a pessoa mais velha a sobreviver à Covid-19.

— Essa senhora é um caso espantoso. Normalmente, as células tiradas da pele para cultivo em laboratório morrem se não forem congeladas em poucas horas. As dela demoraram cinco dias para chegar a São Paulo e não apenas não morreram quanto se mostraram excepcionalmente ativas — conta Zatz.

Numa segunda etapa do trabalho, Zatz planeja ver como os resistentes respondem à vacina.

— Pode ser que tenham uma resposta diferente. Será que eles fazem mais anticorpos mesmo com uma só dose? Isso precisa ser investigado — frisa ela.

Para testar essa possibilidade, o grupo da USP procura fazer uma parceria com o Instituto Butantan, que produz a CoronaVac.

Zatz está animada com a possibilidade de os casos de resistentes serem mais frequentes do que pensavam. Ela diz que não teve dificuldades para encontrar os chamados casais discordantes.

— Ninguém é mais exposto ao vírus do que o cônjuge ou companheiro de alguém infectado. Por isso, é relevante que uma pessoa adoeça ou morra e sua companheira nada tenha. Já fomos procurados por mais de mil pessoas de todo o país nessa situação e os e-mails de interessados em participar do estudo continuam chegando — destaca ela.

A geneticista lembra do caso de um homem de 72 anos, que adoeceu severamente, mas cuja a esposa e a mãe, de 98 anos, que mora com o casal, nada tiveram.

Quase sempre, o cônjuge saudável de um doente grave sequer tem anticorpos. Dos 100 casais analisados, apenas 5% dos cônjuges que não adoeceram apresentaram anticorpos. E dois terços dos o cônjuges que não adoeceram são mulheres.

Impossível esquecer as crianças

Nos jovens que agravam terrivelmente e morrem de Covid-19, mesmo sem comorbidades conhecidas, cientistas especulam que pode haver uma resposta imunológica deficiente controlada por uma configuração genética desfavorável à defesa contra o coronavírus.

O trabalho da equipe integrada por Paulo Saldiva, com Marisa Dolhnikoff e Renata Monteiro, é pioneiro em autópsias não-invasivas de vítimas da Covid-19. Eles buscam nos mortos informações que salvem vidas.

— Nunca é fácil. Impossível se acostumar com autópsias de crianças. Nosso grupo é o que mais publicou estudos com autópsias de covid no mundo, mais de 110 autópsias. É um tipo de estudo trágico e necessário — frisa ele.

Entre o grupo inicial de 45 vítimas jovens de Covid-19 autopsiadas estavam quatro gestantes, dois bebês de mães com Covid-19, seis crianças com menos de 12 anos. Os estudos estão em curso, mas Saldiva adianta que o sequenciamento genético de duas dessas crianças já revelou que não apenas elas não tinham qualquer doença além da Covid-19 como tampouco apresentavam qualquer variação genética conhecida associada à vulnerabilidade.

— Vemos tanta gente adoecer porque na hora em que o coronavírus circula mais acaba por se encontrar com pessoas que têm polimorfismos desfavoráveis. Retomamos as autópsias e estamos fazendo uma espécie de cartografia da Covid-19, ela, aparentemente, tem marcas próprias — diz Saldiva.

Agulha no palheiro

Zatz acrescenta que estudos nos EUA indicaram a existência de pelo menos três genes _ todos do sistema imunológico _ que podem estar associados a uma maior vulnerabilidade. A resistência pode ser ainda mais complexa. Há pistas de que o chamado sistema HLA está envolvido, diz Zatz.

O sistema HLA é crucial nas defesas. É ele que que identifica e reage invasores, como vírus. Mas caçar alterações no HLA é como procurar agulha em palheiro. Seus genes, seis principais e mais de 100 relacionados, estão no cromossomo 6, e há mais de 22.548 alelos (formas como um gene pode se apresentar) conhecidas. Mutações nesses genes estão associadas a uma série de doenças autoimunes, como lúpus e diabetes do tipo 1.

— Esse é um estudo de longo prazo que pode nos ajudar a combater esta e as próximas pandemia — enfatiza Zatz.

Fonte: Paraíba Notícia e o Globo