Médica infectologista do Trauma de Campina Grande narra rotina em hospital na pandemia

Médica infectologista do Trauma de Campina Grande narra rotina em hospital na pandemia

Por Edmilson Pereira - em 4 anos atrás 796

Era noite de quinta-feira, (17) quando enviei uma pergunta pelo Whatsapp para a médica infectologista Priscilla Sá, Presidente do Serviço de Controle de Infecção Hospitalar do Hospital de Emergência e Trauma Dom Luiz Gonzaga Fernandes em Campina Grande. Minha intenção era atualizar informações sobre a epidemia de covid-19 na Paraíba, uma vez que ela é a representante da Paraíba no Comitê Científico de Combate ao Cornavírus do Consórcio Nordeste.

O comitê publicou no site o Boletim 11 nesta quinta-feira com as recentes avaliações da pandemia nos estados do Nordeste e destacou “princípios que podem nortear um planejamento rigoroso e cauteloso para a volta progressiva e escalonada às aulas com segurança e com o menor risco possível”.

Eu tive a oportunidade de entrevistá-la em outros momentos mas, dessa vez, as respostas da médica Priscilla Sá revelaram um impressionante histórico dos meses de pandemia dentro do Hospital de Trauma de Campina Grande e em sua própria vida. A pergunta: “eu gostaria de saber se a senhora poderia dar um parecer sobre o atual estágio da epidemia de covid-19 no hospital onde a senhora trabalha. O trabalho diminuiu? Aumentou? Está mais alto do que esteve em agosto de 2019?”

O depoimento foi dado por áudios, transcritos abaixo:

Estratégia inicial para atendimento à pacientes com covid-19 no hospital

“No Hospital de Trauma de Campina Grande foram abertos 60 leitos para [atender pacientes com] covid-19. Nós éramos um hospital retaguarda. Caso o Hospital Pedro I lotasse, nós assumiríamos. Eram 30 leitos de enfermaria e 30 de UTI. O trabalho foi enorme desde o início. Quando nós soubemos que o Hospital de Trauma, que não tem perfil de [atendimento à] doenças infecciosas, teria duas alas grandes para a covid, nós precisamos tomar muitas e muitas providências.

Equipe de infectologistas do Trauma de Campina Grande, e a colega em atendimento que aparece no celular da médica Priscilla SáA primeira delas foi dividir o hospital ao meio e mudar a estrutura física, porque, desde o início, nós precisávamos proteger, acima de tudo os nossos profissionais. Estudamos a planta arquitetônica, chamamos engenheiros, mudamos os locais de entrada e saída dos funcionários que iriam trabalhar na (sic) covid; foi feita uma emergência só pra covid. E eu, que era a única infectologista do hospital, precisei de uma equipe. Foi formada uma equipe com quatro infectologistas – somos em cinco – e tivemos um trabalho imenso para estudar e elaborar os nossos protocolos: eles foram modificados e aperfeiçoados ao longo dos meses; e nós passamos a receber os pacientes.”

O Trauma-CG chegou a 90% de ocupação dos leitos para covid-19

“Os primeiros pacientes chegaram, num ritmo ainda tranquilo, mas, no nosso pico, tivemos 90% de ocupação dos leitos covid e tinha dias que internávamos, 17, 20 pacientes de uma vez. O trabalho foi imenso porque eu, como infectologista, dava suporte à equipe-covid (sic), nós fazíamos visitas multidisciplinares diárias – a equipe fazia duas vezes ao dia, sempre com a presença de uma infectologista – e nós montamos um serviço de atendimento ao funcionário com sintoma respiratório. Chegamos a atender mais de  50 funcionários por dia, com sintomas respiratórios. E cada funcionário desse retornou, pelo menos, uma vez para seguimento. Foi oferecida testagem, com exame padrão ouro – o RT-PCR.

Trabalhamos em conjunto em duas frentes. Primeiro, para salvar o maior número de pacientes possível. O último número que tenho com relação à taxa de letalidade é que salvávamos 7 pacientes a cada 10 internados. Recebemos muitos pacientes já em estado crítico, quando já não havia muita coisa a ser feita.

A outra frente foi não perder nenhum funcionário. Foram muitos funcionários que tiveram a doença – não quer dizer que eles pegaram dentro do hospital, alguns, sim, mas nosso objetivo era evitar que espalhasse o vírus dentro do hospital, então, eles foram isolados e mandados para casa muito cedo, mesmo com sintomas leves, até recebermos o resultado do teste e, estando negativo, eles voltavam ao trabalho.

Tivemos um sucesso absoluto no acompanhamento do profissional de saúde. Uma única funcionária precisou de ventilação mecânica e não tivemos nenhum óbito entre nossos profissionais de saúde.”

Como se deu o treinamento das equipes

“O Hospital de Emergência e Trauma seguia recebendo pacientes de emergência e trauma com risco de evoluírem para um quadro de infecção o que exige um trabalho de prevenção; sou presidente do serviço de controle de infecção hospitalar e a atenção é necessária para todo o hospital. Na ala covid há pacientes que evoluem para uma infecção hospitalar causando um desfecho negativo.

Houve semanas em que eu dava treinamento dentro da ala covid – eu repetia os treinamentos, voltando ao básico, porque o controle de infecção hospitalar precisou ser redobrado. Talvez esse tenha sido um dos fatores para a baixa taxa de letalidade dentro da ala covid. Um trabalho grande em várias frentes: aprender a tratar o paciente dentro das evidências científicas, escolher e treinar as pessoas para formar a equipe; o pessoas da higienização tinha que ser extremamente atuante, rápido e eficaz, o enfermeiro, o técnico, o fisioterapeuta, os médicos, os intensivistas, os diaristas, as infectologistas.”

 Quando as alas para Covid-19 foram encerradas

 “Há duas ou três semanas nossas duas alas foram fechadas porque o número pacientes diminuiu e com a abertura do Hospital das Clínicas transferimos os pacientes gradativamente. Fizemos treinamentos no Hospital das Clínicas e esse hospital passou a concentrar pacientes com covid.

Com a ala fechada, achei que o trabalho iria diminuir, mas havia muito serviço represado, relatórios, treinamento… E eu continuo atendendo covid. Não há um dia em que eu não atenda covid. Nessa última semana notamos um aumento importante de funcionários sintomáticos, com problemas respiratórios.”

 Disciplina da equipe médica evitou infecção

 “Eu não tive covid e nenhuma de nós, infectologistas, teve covid. A exposição foi muito grande. Na sala em que atendemos os profissionais de saúde nossa exposição é com proteção adequada, máscara cirúrgica o dia inteiro, EPIs de boa qualidade e disciplina. Uma vigia a outra: tocar no olho, pegar no prontuário de um paciente e higienizar a mão… Se estivermos duas pessoas conversando, estaremos com máscara. Não foi fácil tudo o que a gente viveu.”

Contribuição científica

 “Agora começamos a estudar todos os dados armazenados. Quando começamos a reparar a parte física do Hospital de Trauma e a treinar a equipe, começamos também a nos preparar para produzir cientificamente também.

Eu já faço pesquisa com o Nutes, da UEPB, Núcleo de Tecnologia Estratégica em Saúde, e eu idealizei, com a ajuda das outras infectos, uma plataforma de coleta de dados. E nossa sala de infectologia funciona como um Centro de Estudo de Casos.

Estamos organizando os dados de todos esses pacientes que internamos, de todos os profissionais de saúde que atendemos e vamos dar uma contribuição científica. Já temos projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e vamos mostrar o que fizemos em dados e análises em artigos e publicações.”

A infectologista mulher e mãe

 Com a necessidade de estar no hospital, médica contou com o apoio do marido nas tarefas domésticas“Das outras vezes que você pediu entrevista eu estava exaurida, não foi e não está sendo fácil ser infectologista mulher, mãe de três crianças, em uma pandemia. O infectologista é a especialidade que foi treinada para atuar dentro de uma pandemia. Enquanto estudávamos, nunca achamos que fôssemos viver uma!

Agora, como se comportar, sendo uma mãe, eu não fui treinada e não estava preparada para isso. A coisa mais difícil que fiz foi estar ausente; eu não costumava ficar tão ausente de casa e deixar minhas filhas sem a rede de apoio que eu tinha e precisou cumprir o isolamento social: mãe, irmãs, secretária, ex-sogra e vizinha. E a própria escola faz parte dessa rede de apoio. Eu me vi, praticamente, sete dias por semana fora de casa e nenhuma rede de apoio. Por isso eu me rendo em homenagens às mulheres que tiveram companheiros dignos que assumiram um papel que antes era nosso. Graças a Deus eu tive e tenho um companheiro que assumiu tudo. Eu saí e ele assumiu o meu lugar. E eu preciso dizer que a escola também deu, e dá, um grande apoio.

Eu via que minhas filhas também estavam tensas; tive momentos em que precisei me isolar e não voltar pra casa, por achar que eu estava doente, estar com uma dor de garganta e não ter certeza da minha saúde. Dormi no hospital muitos dias, pois eu tinha medo de transmitir qualquer coisa.

Os primeiros dois meses foram os mais tensos porque eu tinha medo de contaminar minha família. Agora já sei que a minha disciplina dá resultado, a proteção que uso no trabalho funciona, então, venho pra casa mais tranquila.

Mas as cicatrizes emocionais de toda essa tensão ficaram., das noites sem sono, preocupação, eu me senti muito responsável por todos os funcionários do hospital, pelas infectologistas da minha equipe, pela minha família, meus pais… Visitei-os duas vezes apenas, até agora. Uma delas, de longe. Vou demorar um tempo para voltar a ser algo parecido com o que eu era antes.”

“Talvez, eu estivesse precisando falar”

Filha mais nova mostra o quadro das Andorinhas, atividade escolar feita com grãos de feijão“Eu nem lembro mais qual foi o tema de sua pergunta inicial! Comecei a falar e foi saindo, talvez eu estivesse precisando falar. As entrevistas eram com perguntas bem técnicas – uso de máscara, hidroxicloroquina – ninguém nunca me perguntou como eu estava!

Eu vi que o que eu estava vivendo era único, diferente, não sabia se iria sobreviver… Tirei muitas fotos porque, se eu sobrevivesse, queria ter a lembrança do que vivi, se não, eu queria que as minhas meninas tivessem a lembrança de tudo o que passei e como consegui ajudar.

Hoje eu tive que parar tudo, parar covid, treinamento, infecção, para dar atenção à minha filha menor, de 8 anos, que tinha que fazer uma tarefa de artesanato com feijões. Ela queria desenhar um estetoscópio – ela quis me homenagear – mas não conseguimos. Fizemos três andorinhas pousadas em um fio; eu terminei querendo fazer essa homenagem para as minhas três meninas!”

Fonte: Por Márcia Dementshuk